28 de junho de 2009

Jostein Gaarder, Victor Hellern, Henry Notaker - O livro das religiões

GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

É impossível definir o surgimento do sentimento religioso no ser humano. Sabemos que desde os primórdios o homem busca em crenças próprias a explicação para aquilo que ele não conhece. E desta busca por entendimento surgiram as mais diversas crenças, além de formas diferenciadas de culto, como o politeísmo, monoteísmo, monolatria, panteísmo, animismo, etc. É sabido também que a interpretação destas religiões é responsável não só para a formação da Ética, oriental ou ocidental, quanto pelos inúmeros conflitos que por incontáveis eras seguem sem aparente solução. Um assunto pertinente, sempre em voga, principalmente quando paramos para analisar o quanto a religião é usada como ferramenta de legitimação, seja política, moral ou social.

Tentando passar ao leitor explicações abrangentes sobre algumas das mais importantes religiões do mundo, Jostein Gaarder, Victor Hellern e Henry Notaker apresentam O livro das religiões. Jostein Gaarder, renomado escritor norueguês, nasceu em 1952. Filho de escritores, Gaarder ficou conhecido mundialmente pelo seu livro O mundo de Sofia, publicado em 1991. Através do sucesso dessa obra, o autor pôde dedicar-se integralmente à escrita.

Victor Hellern, nascido em 1928, é um historiador também norueguês conhecido por suas diversas obras sobre teologia. Contudo, sua única obra traduzida para o português é justamente esta resenhada. Por fim, temos Henry Notaker. Também norueguês, se trata de um jornalista, tendo este trabalhado em áreas de cultura e política exterior. Foi, inclusive, correspondente no Leste Europeu e na Espanha.

O livro inicia corretamente apresentando algumas das dúvidas mais básicas acerca do tema: “Por que ler sobre as religiões?”, “Como começaram as religiões?”, entre outras. Discorre acerca de questões relativas à crenças, como a vida após a morte, o sagrado, os conceitos de divindade, conceito de homem, mundo, cerimoniais, oração, sacrifícios, ética, entre tantas outras características indissociáveis da religião.

Antes de começar a detalhar as religiões, o livro separa de forma coerente as religiões orientais das ocidentais, para assim começar a analisar individualmente as religiões, começando pelo Hinduísmo. Obviamente que se trata de um resumo, pois se trata de uma religião deveras antiga e complexa. Contudo, é um texto aceitável para um rápido entendimento sobre o assunto. Logo, o texto passa para o Budismo, que mantém laços estreitos com sua religião de origem, anteriormente analisada pela obra. Adiante, passando pelas religiões do extremo oriente, temos adiante o Confucionismo, o Taoísmo e o Xintoísmo, todas de forma resumida.

Ainda mais compactadas estão as informações sobre religiões africanas. Os próprios autores deixam claro a enorme dificuldade de análise nesta área quando dizem:

“Ao agrupar as religiões africanas sob um só rótulo, deve-se ter em mente que seu número equivale ao de povos existentes na África. Cada um tem seu próprio nome para Deus, seus próprios rituais de culto, suas idiossincrasias. Por outro lado, elas apresentam também muitos traços em comum, pois os africanos não viveram uma existência estática, isolada”.
(1)

Tendo consciência do quão limitador é a compilação de tantas crenças sob o mesmo rótulo, os autores tentam dissertar sobre os padrões destas religiões tribais, os chefes tribais, os ritos, a concepção de deus (ou deuses), espíritos, morte, entre outros aspectos em comum.

A próxima parte do livro é, sem dúvida, a mais detalhada. É compreensível, já que ela trata das religiões monoteístas surgidas no Oriente Médio. Nos são apresentadas as religiões que mais são conhecidas pelo ocidente: Judaísmo, Islamismo e Cristianismo. O texto sobre Cristianismo é de uma riqueza de detalhes significativa, abordando diversos aspectos de sua doutrina, sem esquecer as diversas igrejas derivadas do mesmo. O livro aborda tanto a Igreja Católica Apostólica Romana como a Igreja Católica Ortodoxa, a Igreja Batista, Adventista, os Pentecostais, o Exército da Salvação, os Quacres, entre outros.

Mais adiante, nos são apresentadas filosofias não religiosas, como o Humanismo, o Materialismo e o Marxismo. No final, o livro passa por algumas religiões mais recentes, como o espiritismo, trata do ateísmo e do agnosticismo e possui um apêndice sobre as religiões no Brasil.

De fato, poderíamos estender durante várias páginas os detalhes deste livro. É paradoxal dizer que ele detalha as religiões ao mesmo tempo que resume. De fato, estudar cada uma delas individualmente requer maior busca de fontes e obras complementares, mas dificilmente uma obra aborda tantas religiões diferentes de forma tão competente quanto este livro, ainda mais de forma tão imparcial – talvez não na quantidade de conteúdo, mas certamente no respeito com todas estas. O fato de ter sido lançada em edição de bolso pela Companhia das Letras dá um maior acesso à obra, sem alterar o texto original. Qualquer pessoa, historiador ou não, que deseja estudar religiões, precisa ler esta obra. De grande valia principalmente para desmistificar preconceitos, já que é justamente o preconceito o responsável pela miríade de informações sem qualquer credibilidade e com nítida falta de conhecimento que vemos pelo mundo afora.

Preço médio: R$ 25,00

Notas:
(1) GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. pp 98.

21 de junho de 2009

Dee Brown - Enterrem meu coração na curva do rio

BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2003.

A cultura popular em geral, desde filmes de faroeste a desenhos animados, sempre exaltou a ousadia do homem branco em solo americano, arriscando sua preciosa vida em nome do progresso, da civilização e do bem-estar do “povo americano.” Para tal, envolvia-se em perigosíssimas batalhas contra os índios; criaturas odiadas pelo branco, selvagens sanguinários, praticantes do brutal escalpo que, armados de arcos, flechas, lanças, pedras e rifles velhos, impediam a expansão americana.
Pois eis que em 1970, Dee Brown lança o livro Enterrem meu coração na curva do rio. Nascido em Louisiana, seu primeiro amigo fora um menino índio, que o acompanhava em todos os filmes que retratavam a luta do branco herói contra o índio maléfico. Ao término dos filmes, o garoto índio sempre aplaudia a vitória do branco sobre o índio. Dee Brown não entendia, até que questionou seu amigo sobre tal fato e este respondera “Não são índios de verdade.” Foi aí que Brown percebeu que de fato, os índios retratados em filmes, livros e desenhos não passavam de caricaturas estereotipadas dos verdadeiros indígenas; homens pacíficos que lutavam para manter o seu direito a vida, o direito de viver nas terras que sempre foram suas e de seus antepassados, a preservação da caça e a preservação da natureza, indispensável para a vida.
Formando-se na Universidade de Washington durante a grande Depressão, conseguiu um emprego de bibliotecário do Departamento de Agricultura. Foi nessa época que começou a mostrar suas habilidades como pesquisador. Para a criação de Enterrem meu coração na curva do rio, Brown utilizou-se de registros oficiais de conselhos e tratados, entrevistas concedidas por índios encontradas em obscuros jornais da época, entre outras fontes que dificilmente veriam a luz do dia se não fosse o interesse de um competente pesquisador.
O período que o livro analisa – e que é o período de onde os maiores mitos do velho oeste surgiram – é o que compreende os 30 anos entre 1860 a 1890. Enquanto a historiografia americana guardava em sua memória massacres como o de Little Big Horn, aonde morreu o General Custer, eternizado como um bravo comandante e mostrado neste livro como um sanguinário perseguidor de índios, se esquece de massacres dezenas de vezes mais brutais, tal qual o massacre de Sand Creek.
O número de leis criadas para benefício dos índios que foram sumariamente ignoradas com o tempo, o número de tratados quebrados e a quantidade de massacres é difícil de se enumerar. Vou usar apenas o exemplo citado no parágrafo anterior, sobre o massacre de Sand Creek.
Os índios Cheyennes estavam acampados em Sand Creek, por terem recebido a garantia de paz do major Anthony, comandante do Fort Lyon. Este os manteve próximos (o acampamento ficava a 65Km de distância do forte) até que recebesse reforços. Além destes, juntaram-se a ele os homens do coronel Chivington, ex-pastor metodista. Alguns homens de Anthony, como o tenente Joseph Cramer e o capitão Silas Soule, foram terminantemente contra o ataque. Conta-se que Chivington esmurrou Cramer e disse: “Vim para matar índios e acho que é certo e honroso usar qualquer meio sob o céu do Senhor para matar índios.”
O massacre é detalhadamente descrito, segundo relatos dos sobreviventes, de ambas as partes da batalha. Adiante, um longo trecho do livro que descreve os requintes de crueldade com que os soldados agiam, retirados do testemunho de Robert Bent, um dos homens que estava cavalgando contra sua vontade por ordem de Chivington:
“Vi uma squaw (mulher indígena) no banco, com a perna quebrada por um obus; um soldado foi até ela com o sabre desembainhado; ela levantou um braço para se proteger, quando ele golpeou, quebrando-lhe o braço; ela rolou e levantou o outro braço, que ele golpeou e quebrou; depois, deixou-a, sem matá-la. Parecia haver uma matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças. Havia cerca de trinta ou quarenta squaws
Reunidas numa caverna como abrigo. Enviaram uma menina de cerca de seis anos com uma bandeira branca num pau; mal dera uns passos, ela foi atingida e morta. Todas as squaws da caverna foram mortas mais tarde, além de quatro ou cinco homens fora dela. As squaws não ofereceram resistência. Todo mundo que vi morto estava escalpado. Vi uma squaw com seu filho ainda não nascido, segundo me pareceu, ao seu lado. O capitão Soule me disse depois que havia sido isso mesmo. Vi o corpo de Antílope Branco com os genitais cortados e ouvi um soldado dizer que iria fazer uma bolsa de fumo com eles. Vi uma squaw com os genitais cortados... Vi uma menina de uns cinco anos que se escondera na areia; dois soldados descobriram-na, tiraram seus revólveres e a mataram, arrastando-a depois pelo braço sobre a areia. Vi várias crianças de colo mortas com suas mães.” (1)

Este é apenas um dos trechos do livro que descreve a crueldade com a qual o soldado branco agia. Neste episódio em particular, um dos principais líderes do acampamento, Chaleira Preta, saíra com uma bandeira dos Estados Unidos e fora em direção a um dos dois grupos de soldados. A ele foi prometido que, empunhando a bandeira norte-americana, nenhum soldado atiraria nele. Chaleira Preta e os demais índios ao seu redor foram alvejados pelos rifles dos homens de Chivington e Anthony. Devo citar, aproveitando a ponte, que o ato do escalpo que durante tantas décadas foi creditado ao "índio senvagem" na realidade foi introduzido na américa pelos espanhóis e só passou a ser utilizado pelos índios norte-americanos porque os casacos-azuis assim o fizeram primeiro, tal como está descrito no relato postado acima. Infelizmente, não era conveniente que os "bravos soldados" fossem retratados como realmente eram. Era mais simples enumerar relatos de barbáries indígenas para legitimar a matança dos "inimigos do progresso e do homem branco".

Gradativamente, dezenas de outros povos foram exterminados ou reduzidos a poucos representantes. Desta época sangrenta surgiram nomes que, mesmo estando do lado até então considerado vil, sobreviveram na mentalidade americana. Nomes como Nuvem vermelha, Cochise e Touro-Sentado fazem parte desse grupo.
Este livro, mais do que um triste relato sobre todos os infortúnios que os índios norte-americanos tiveram que enfrentar, foi fundamental para toda uma revisão histórica e uma mudança de mentalidades. Pode-se dizer que esta obra mexeu com a consciência dos norte-americanos, e foi a partir dele que surgiram diversos filmes mostrando o lado dos vencidos.

Levando em conta que ele trata exclusivamente da história dos Estados Unidos, muitos talvez não se interessem pelo mesmo. Sua leitura pode ser um tanto cansativa para quem não possui interesse no tema. Mas mesmo assim me vejo no dever de recomendar este livro para qualquer historiador. Mais do que um simples estudo de três décadas de injustiças, ele é uma mostra da brutalidade humana, do que o homem é capaz de fazer para atingir seus objetivos. Seria de uma ingenuidade tamanha acreditar que estes foram episódios isolados e que tais mostras de barbárie não se repetem nas inúmeras guerras e guerrilhas que ainda hoje nos batem à porta mediante jornais e noticiários em geral. Mais do que conhecer acontecimentos do passado de um outro país, ler este livro é conhecer a mentalidade daqueles que sempre justificaram suas ações com seus discursos demagogos de caráter civilizatório.

Pode soar falso, mas dizer que se trata de um livro emocionante, que realmente faz você pensar sobre a mentalidade humana e lhe ensina a olhar com desconfiança a dita “história oficial”, não é exagero.

Preço médio: R$ 23,00

Notas:
(1): BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2003. pp 78-79

20 de junho de 2009

Peter Burke - A escola dos Annales

BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.


Sem dúvida, a originalidade e a inovação são caminhos que levam qualquer profissional, de qualquer área, a tornar-se referência. Eis que na historiografia essa regra não é inexistente. O inglês Peter Burke reitera isto ao publicar esta obra, A escola dos Annales.

Annales foi uma revista criada na França em 1929, responsável pela criação do que hoje é chamado de “Nova História”. Até o momento da criação desta revista, a história era basicamente positivista. Esta história consiste na exaltação de grandes homens, grandes feitos, uma história política que em muitos casos era uma forma de legitimação. Quaisquer outras abordagens históricas, quando tentadas, dificilmente recebiam o devido interesse. Aos poucos, essa história positivista fortemente influenciada pelas Ciências Naturais começou a receber duras críticas, principalmente por parte dos durkheimianos. Foi então que Lucien Febvre e Mark Bloch criaram a já citada revista Annales. Sua metodologia, que futuramente se estabeleceu como novo paradigma, consistia em abrir caminho para uma interdisciplinaridade entre a história e as Ciências Sociais, aos poucos estendendo esta conexão com outras disciplinas como a Geografia, Antropologia e a Psicologia.

A história que até o momento consistia apenas em apresentar a narrativa de acordo com as fontes – e nesse caso as fontes dificilmente ultrapassavam os limites da escrita – passou a apresentar mais do que narrativas, mas problemáticas; deixando de focar exclusivamente em grandes feitos, abrindo caminho para o estudo de temas cotidianos. Essa roupagem que lembrava as ciências sociais deu à história uma concepção mais científica que até o momento relutava-se em admitir.

Sendo um pouco mais específico, pode-se dizer que a história tradicional era narrativa, possuía uma cronologia definida, escrita de forma linear, usando documentos oficiais como fonte, era evolucionista e privilegiava fatos de cunho político. A história-problema foge deste padrão, a começar pelas fontes. Tal qual Gilberto Freyre fez em seu clássico Casa grande e senzala, o novo historiador utiliza-se de fontes diversas, de imagem à arquitetura. Dispensa uma ordem cronológica e, mais do que reproduzir os documentos, ele precisa interpretá-los; escolhe um objeto de estudo presente e busca as respostas no passado. Não tenta ser imparcial, anulando sua crítica e sua opinião, e claramente escolhe os fatos de acordo com o que for mais conveniente para seu estudo. Mais do que narração de fatos, essa Nova História está carregada de senso crítico.

A primeira geração da escola dos Annales foi liderada basicamente pelos seus criadores: Lucien Febvre – o maior defensor da história-problema, do uso de fontes não-documentais e do diálogo entre os historiadores quanto a suas metodologias – e Mark Bloch. Estes, entre outras coisas, buscavam mais do que as singularidades da história, marca positivista; buscavam uma “história das mentalidades”. Algo diferente do que o líder da segunda geração da escola, Fernand Braudel, focalizou.

Braudel acreditava em uma história de “três períodos”. A história de curta duração, média duração e longa duração. A primeira podemos explicar fazendo uma analogia com as noticias que diariamente vemos nos jornais. Fatos que fazem parte de uma história de um curto período. Um período maior classifica-se como média duração e por fim, a história de longa duração é aquela que para Braudel importava. A história de longa duração não sofria interferência de pequenos fatos, da história de curta duração.

Criando sua metodologia em cima de uma história que, mantendo-se interdisciplinar, era claramente quantitativa, Braudel usou a demografia e o tempo como objetos de estudo. Sua obra mais importante, O Mediterrâneo e Felipe II, é um claro exemplo disto. A obra apresenta de forma clara que, para o autor, a geografia e o tempo são de importante influência na história. Não podemos ignorar, obviamente, o fato desta obra ter sido criticada consideravelmente, mas seria um erro ainda maior ignorar os paradigmas que ela ajudou a fortalecer. Neste ponto a história das mentalidades sofreu um decréscimo de importância, visto que nesta nova abordagem quantitativa a história das mentalidades não possuía a mesma sustentação que a história socioeconômica.

Durante a terceira geração da escola dos Annales, duras críticas foram advindas de sua abordagem. Por conta de sua crítica, os historiadores do movimento foram acusados de negligenciarem a história política. A crítica não procedia, pois o afastamento da história política não era algo generalizado dentro dos Annales. Nesta época há uma retomada da história narrativa e de eventos.

O livro de Peter Burke não é o único que aborda a escola dos Annales. Contudo, pode ser considerada a mais bem-sucedida síntese do que foi este movimento e o que ele significou para a história. Desmistifica a idéia de conflito entre a História Cultural e a História Marxista, nos apresenta com riqueza de informações a evolução do movimento, seus grandes nomes e suas metodologias. Historiadores em geral devem ter contato com esta obra, já que dela podem ser extraídas informações cruciais para o entendimento das mudanças que marcaram a escrita da história no século XX. Se hoje a história é tão vastamente fragmentada – e não dou a esta fragmentação um caráter pejorativo, visto que o leque de possibilidades aumenta consideravelmente –, devemos isto em grande parte ao movimento que este livro tão competentemente analisa.

Preço médio: R$ 30,00

Leia também, do mesmo autor:
Hibridismo cultural
Testemunha ocular

16 de junho de 2009

Peter Burke - Testemunha ocular

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004.

Quem leu a abertura deste blog talvez lembre do trecho em que eu dizia ter me inspirado em fazer este blog enquanto lia um livro que julgava essencial para qualquer historiador. Pois bem, o livro é este. Testemunha ocular, de Peter Burke.

Burke, como alguns já sabem, mas tantos outro não, é um inglês professor de História Cultura na Universidade de Cambridge e, segundo fui informado, é colunista de um grande jornal de São Paulo no caderno “Mais” de domingo. Casado com uma professora brasileira, Maria Lúcia Pallares-Burke, é um conhecedor de nossa cultura e grande admirador de Gilberto Freyre.

Neste livro, Burke tenta mostrar ao historiador a importância das imagens como fontes históricas. Entretanto, é necessário informar desde o início que o livro, ao contrário do que possa parecer, não é uma espécie de guia com fórmulas para análise de imagens como fontes. Uma de suas principais funções, na realidade, é informar principalmente as armadilhas que as imagens podem oferecer a quem analisa.
Com um prefácio escrito pelo próprio Burke para a edição brasileira, o livro faz uma introdução ao tema, sendo que desta ressalto o trecho em que Burke afirma preferir o termo “indícios” ao invés de “fontes”, pois segundo ele:

“os historiadores têm se referido ao seus documentos como “fontes”, como se eles estivessem enchendo baldes no riacho da Verdade, suas histórias tornando-se cada vez mais puras, à medida que se aproximam das origens. A metáfora é vívida, mas também ilusória no sentido de que implica a possibilidade de um relato do passado que não seja contaminado por intermediários.” (1)

O primeiro capítulo fala sobre a fotografia e a pintura com realismo fotográfico. Principalmente se atendo à primeira, o autor comenta sobre a facilidade com que alguém pode ser enganado pela impressão de realidade que uma foto dá. Afinal, por mais que a imagem esteja fielmente retratada, o que se vê é apenas uma parte do todo, a visão do fotógrafo, e este pode forjar uma cena. Já o segundo trata da iconografia e da iconologia, ambos os termos ás vezes colocados como sinônimos, significando o estudo da mensagem que a imagem tenta passar.

O terceiro capítulo trata do uso de imagens em religiões, geralmente como um instrumento de fé. Entre as discussões do mesmo, estão a figura do diabo, dos santos, a iconoclastia e a propagação de idéias por parte destas, como as imagens que criticavam a Igreja Católica Apostólica Romana, propagadas pelos protestantes. O quarto capítulo, abordando aspectos mais políticos, fala do uso da imagem como arma de protesto e o seu poder para tal fim. Já o quinto mostra a imagem como veículo de propagação da cultura material, bem como ferramenta para sua compreensão, mostrando algumas das principais armadilhas desse tipo de divulgação e alguns casos conhecidos em que a imagem mostrava mais do que a realidade. Claro que não podemos desconsiderar casos em que só através das imagens tivemos acesso visual a coisas que já não mais existem.

O aspecto social é mais discutido em capítulos posteriores. O sexto, intitulado “Visões de sociedade”, aborda a retratação de determinados aspectos sociais e de seus elementos. Uma parte do capítulo, por exemplo, é dedicada apenas à retratação das crianças, enquanto outra é dedicada às mulheres. O sétimo, o primeiro capítulo com o qual tive contato e, na minha opinião, um dos melhores, fala do perigo do estereótipo. A imagem do outro, o desconhecido, formada em cima de clichês ou de pré-concepções é algo pertinente demais na sociedade, e por que não dizer que é algo incrustado no ser humano... de qualquer modo, o capítulo ressalta que nem todo o estereótipo é leviano, sendo por vezes a primeira imagem que se tem de algo que não se conhece, á partir de elementos comuns ao espectador.
O capítulo seguinte é dedicado á idéia de “Narrativas Visuais”, partindo do pressuposto que toda a imagem conta uma história, desde uma imagem única até uma série de imagens. O nono aborda o pintor ou o cineasta como propagadores da história, á partir do momento que deixam de ser testemunha e passam a ser “historiadores”. Novamente Burke atesta para as diversas armadilhas da imagem.
O fim do livro, mais precisamente os capítulos 10 e 11, abordam os aspectos psicológicos e culturais das mesmas. Ao fim do último capítulo, Burke novamente ressalta o objetivo de seu livro. Algumas frases-chave para o entendimento da obra são:

“As imagens dão acesso não ao mundo social diretamente, mas sim, visões contemporâneas daquele mundo [...] O testemunho das imagens necessita ser colocado no “contexto”, ou melhor, em uma série de contextos no plural (cultural, político, material, e assim por diante [...] Uma série de imagens oferece testemunho mais confiável do que imagens individuais [...] No caso de imagens, como no caso de textos, o historiador necessita ler nas entrelinhas, observando os detalhes pequenos mas significativos – incluindo ausências significativas – usando-os como pistas para informações que os produtores de imagens não sabiam que eles sabiam, ou para suposições que eles não estavam conscientes de possuir.” (2)

Possivelmente, a pergunta que fica no ar é: por que este livro é indispensável?

Foi-se o tempo em que a história era apenas uma pesquisa de documentos oficiais, focada em uma história intrinsecamente positivista, onde os documentos falavam por si e demais fontes eram ignoradas. Hoje existe a consciência de que imagens podem nos fornecer valiosos testemunhos que a escrita ou a oralidade não o podem, na maior parte das vezes por um distanciamento da época retratada. Você ultrapassa as barreiras das histórias oficiais e passa a ver, mesmo que como um leve resquício, coisas que estes documentos não podem mostrar, como imagens do cotidiano de pessoas menos favorecidas economicamente e iletradas; ou seja, que não podiam perpetuar seu testemunho.

Sobre o livro, fisicamente falando, é necessário ressaltar que se trata de um exemplar de ótima qualidade. Ricamente ilustrado (o que não poderia deixar de ser) e feito com papel reciclado, é visualmente muito bonito.


Como já ressaltei, este livro não ensina fórmulas de análise. Contudo, fornece informações valiosas sobre os perigos desta mesma análise, tanto quanto ressalta sua importância. Claro que, se você é apenas um entusiasta da história, pode não se interessar pelas entrelinhas de uma imagem, mas fica aqui a dica de uma obra excelente.

Preço médio: R$ 39,90


Notas:
(1) BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem; tradução Vera Maria Xavier dos Santos; revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. – Bauru, SP: EDUSC, 2004. pp 16
(2) BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem; tradução Vera Maria Xavier dos Santos; revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. – Bauru, SP: EDUSC, 2004. pp 236-238

LEIA TAMBÉM, DO MESMO AUTOR:
Hibridismo cultural
A escola dos Annales

14 de junho de 2009

Carlos Roberto F. Nogueira - O Diabo no imaginário cristão


NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. 2ª Ed. Bauru: EDUSC, 2002.

Caros leitores
Depois de pensar um pouco, decidi que o próximo livro a ser resenhado seria o último livro que li, mais precisamente O Diabo no imaginário cristão, de Carlos Roberto F. Nogueira. Conciso e direto, o livro explica a inserção do antagonista de Deus no cristianismo.

Falando pouco sobre o autor, basta citar que o mesmo é professor titular da Universidade de São Paulo, sendo especialista em história antiga e medieval. Nota-se através deste livro que, de fato, possui grande conhecimento destes períodos, principalmente no que tange á religião e crenças populares.

O que seria dos bons se não houvessem os maus? Se não existisse o mau, possivelmente o conceito de bondade seria inexistente. Não obstante, o Deus do Antigo Testamento bíblico é o senhor do bem e do mau. Concede dádivas quando há merecimento, mas também pode causar grandes catástrofes para punir, caso necessário. Como exemplo, podemos citar a destruição de Sodoma e Gomorra, além do conhecido grande dilúvio.

Já no Novo Testamento, o que temos? A inserção de um antagonista: o diabo. Se no Antigo Testamento haviam algumas figuras que apenas futuramente foram associadas ao demônio, no Novo Testamento ele é uma peça fundamental. É aquele que desvirtua o homem, que tenta Jesus durante seu jejum, que traz a ruína e quem, no fim dos tempos, se digladiaria contra o Senhor no Juízo Final, sucumbindo enfim.

Esta inserção do mito do demônio é explicada nesta obra, mas o principal foco dela é a paranóia medieval do demoníaco. A presença do diabo 24 horas por dia, sendo responsável por todos os males, todas as falhas de caráter. Em outras palavras, podemos dizer claramente que o mundo era dominado pelo demônio, e alcançar a graça divina era uma dádiva da qual poucos virtuosos poderiam se orgulhar de receber.

De uma criatura sem face para uma aberração, geralmente descrita pelas visões de Santos ou pelos depoimentos de acusados de bruxaria, o demônio passou a ser retratado de forma semelhante ao que conhecemos hoje. Aspecto grotesco, asas de morcego e em várias obras, um rosto no lugar do ânus, que seus adoradores beijavam em cerimônias macabras – reiterando que estes eram depoimentos de supostos envolvidos com bruxaria sob intensa tortura. Não podemos esquecer que as representações de divindades pagãs contribuíram muito para a concepção atual do demônio, desde divindades antropozoomórficas de povos antigos como os babilônios até divindades de povos chamados pelo ocidente medieval de bárbaros.

O livro é direto, e esta edição que resenho aqui possui o diferencial de ser ilustrada com belas imagens (dependendo, é claro, da concepção de beleza de cada um, já que imagens do demônio oriundas de pinturas do período gótico não são exatamente belas, mas enfim...) coloridas, tanto de pinturas quanto de relevos, que servem como referência ao leitor leigo.

Para quem se interessa por cristianismo e quer estudar o efeito da religião na mentalidade e na cultura, este livro é um excelente material.

Preço médio: R$ 25,00

LEIA TAMBÉM, DO MESMO AUTOR:
Carlos R. F. Nogueira - Bruxaria e história

Jacques Le Goff - A Bolsa e a vida

LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Usura. Esta é a palavra que será repetida uma infinidade de vezes durante o decorrer desta obra sendo o tema central deste livro de Jacques Le Goff. Confesso que soa um tanto hipócrita que na apresentação do blog eu tenha falando sobre a facilidade de se procurar material de Le Goff, Foucault e outros por serem conhecidos e agora estar postando dois livros deste autor em sequência. No entanto, são livros baratos, relativamente fáceis de se encontrar e possuem um conteúdo muito rico para a compreensão da cultura medieval e sua sociedade como um todo, novamente salientando a impossibilidade de o fazer sem envolver a religião, mais precisamente o cristianismo – sob a forma da Igreja Católica Apostólica Romana.


Para iniciar a resenha, creio que seja necessário primeiro elucidar o significado da palavra usura, que caiu em desuso com o passar do tempo. Usura é o ato de se emprestar dinheiro e obter lucro em cima dos juros decorrentes do tempo. Em outras palavras, empréstimo, geralmente sob altos juros.

A principal problemática do livro gira em torno da condenação ferrenha do cristianismo à pratica da usura. Segundo os católicos, o usurário era a pior espécie de ser humano. Enquanto ladrões roubavam bens e objetos, o usurário roubava Deus. Ora, se o usurário empresta o dinheiro e recebe o lucro em cima do tempo, sendo Deus o único dono e senhor do tempo, logo o usurário está roubando a Deus. O problema é que essa condenação exagerada do usurário começou a se tornar inconveniente quando aos poucos o sistema capitalista começou a dar mostras de nascimento. Então, convenientemente, criou-se a idéia de que um usurário, caso devolvesse o lucro ilícito proveniente da usura antes da morte, poderia encontrar a salvação – esta provavelmente pelo purgatório. Como em um determinado trecho é explicitado: “O purgatório, decididamente, não é mais do que uma oportunidade que o cristianismo dá ao usurário no século XIII, mas só o purgatório lhe assegura o paraíso sem restrição.”

O livro ilustra através de pequenas parábolas da época o medo que o usurário tinha da morte e todos os infortúnios que a prática da usura o traria, em vida ou após a morte. Mostra também o quanto essa aversão contribuiu para agravar a imagem negativa que o ocidente medieval cristão possuía dos judeus.

Porém, como já dito anteriormente, os usurários foram peças fundamentais para a formação do capitalismo como o conhecemos atualmente. Os usurários do passado – pelo menos boa parte deles – se tornaram comerciantes, e assim esses sistema econômico teve seu surgimento.


Considero o trabalho anteriormente resenhado (O Deus da Idade Média) mais interessante, mas devo dizer que isso se deve ao fato de eu ser mais interessado nos aspectos religiosos do que político-econômicos das civilizações. Este livro torna-se de grande valia para qualquer um que queira entender como a religião teve que adaptar-se às mudanças da sociedade, mesmo aquelas que feriam suas doutrinas mais antigas.

Preço médio: 21,90

Jacques Le Goff - O Deus da Idade Média

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.



Enquanto o mundo se afoga em profecias apocalípticas de fim dos dias, Igrejas das mais diversas surgem prometendo a salvação, esta sendo rejeitada gradativamente por um mundo que torna-se apático ao que no passado era a razão de todo um comportamento regrado. Se hoje podemos nos imaginar livres de religiões e dogmas, o ocidente medieval não podia. É impossível dissociar Deus, Igreja Católica e a Idade Média, dado o grau de importância que esta Igreja possuía e sua influência sobre toda uma civilização, com diversos resquícios que duram até hoje.

Este cenário, que podemos chamar de exótico caso queiramos nos utilizar de eufemismo, é ideal para inspirar uma boa obra. E esta resenha fala de uma. Mais precisamente O Deus da Idade Média, do medievalista francês Jacques Le Goff.

Sendo um dos maiores medievalistas do mundo, Le Goff dedicou a maior parte de suas obras a essa época tão cheia de nuances. Neste livro, o autor foca na presença de Deus neste período, desenvolvendo a obra através de conversas – como já explicita o sub-título – com o historiador e redator-chefe da revista Le Monde de La Bible, Jean-Luc Pouthier.

O livro aborda diversas questões. É discutida, por exemplo, a visão que a população medieval possuía de Deus, como o imaginavam e sua relação com o mesmo. Logo no primeiro capítulo, com poucas palavras, Le Goff explicita o início do Cristianismo e esboça sua expansão:

“A Antiguidade tardia é o período em que o Deus dos cristãos se torna o Deus único do Império Romano. Esse Deus é um Deus oriental que consegue se impor no Ocidente. Os primeiros grupos de cristãos se desenvolveram um pouco à maneira de uma seita, que faz conquistas e cujo número de membros cresce.” (1)

Ainda no mesmo capítulo, é importante frisarmos a influência de práticas pagãs no culto cristão. Essas práticas continuaram sendo praticadas na surdina pelos camponeses. Ora, á partir do momento que 90% da população se concentrava nos campos, temos aí uma grande deturpação deste culto cristão que prega a idéia de que toda crença fora do cristianismo é de origem demoníaca.

No segundo capítulo, Le Goff aborda a presença de duas figuras que alcançaram grande status na época e que até hoje mantém-se com força: o Espírito Santo e a Virgem Maria. O capítulo tenta mostrar a flexibilidade do monoteísmo cristão medieval quanto à presença de outras figuras que não Deus. Ilustra a dificuldade não apenas do povo entender a presença deste Espírito Santo e da unidade da Santíssima Trindade quanto a dos clérigos da época ao tentarem criar uma concepção compreensível desta.

No terceiro capítulo, é discutida a presença de Deus na Idade Média, principalmente sua representação. Afinal de contas, os cristãos representam Deus através da arte, diferentemente de judeus e muçulmanos que cultuam um Deus não visualizado. Não apenas isso, os cristãos o representam sob um aspecto monárquico, praticamente imperial; tal qual um rei em seu trono, com poderes absolutos.

No quarto capítulo, o livro foca no papel da Igreja na cultura medieval. É um tanto complicado apontar o foco da discussão, já que esse é um assunto suficientemente longo; contudo, é algo que jamais pode ser ignorado, já que essa influência marcou para sempre a cultura e a formação da ética ocidental. Por mais que não se perceba, seus elementos estão presentes em nosso cotidiano, mesmo depois de tantos séculos.

Um livro pequeno, poucas páginas, letras grandes, que pode ser lido rapidamente. Porém, possui um conteúdo tão rico que é impossível menosprezá-lo. Ele segue o caminho inverso de livros gigantescos que se perdem em floreios e fogem do foco. Objetivo, é uma leitura obrigatória para qualquer historiador que deseje compreender a inserção da Igreja na sociedade medieval.

Preço médio: R$ 25,00


LEIA TAMBÉM, DO MESMO AUTOR
A civilização do ocidente medieval
A bolsa e a vida

COM CAPÍTULO DO MESMO AUTOR
Questões para a história do presente

Notas:
(1) LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp 18

13 de junho de 2009

Fustel de Coulanges - A Cidade Antiga

FUSTEL DE COULANGES. A Cidade Antiga. 2ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2001

Muitos foram os historiadores do século XIX que deixaram sua marca na historiografia com obras que até os nossos dias são referência, mas poucos foram aqueles que conseguiram deixar como legado uma obra tão detalhada e minuciosa quanto A Cidade Antiga, do francês Fustel de Coulanges. Tendo sido estudante da École Normale Supérieure e tendo participado de escavações na Grécia, aonde encontrou muitas de suas principais fontes de uso futuro, publicou sua obra máxima, A Cidade Antiga, em 1864, enquanto dava aula na faculdade de letras de Estrasburgo.

Fustel de Coulanges, embora tenha sido contraditório nesse aspecto, dizia que para o estudo da história era imperativo que fosse deixada de lado qualquer conexão com o presente. Ao ler esta obra aqui resenhada vemos isso de forma nítida – muito embora Coulanges não tenha escapado de uma ou outra conexão em determinadas partes do texto – sem muito esforço.

O livro se inicia retratando tempos muito remotos, aonde o culto aos mortos era de uma importância tamanha que soa até um pouco incompreensível para nós, tendo em vista os ritos, a manutenção do culto, a libação, a prestação de contas com os antepassados. É interessante perceber a conexão de crenças de tão remota época com nossos tempos. A idéia de uma alma que vaga sem rumo, sem direito ao descanso eterno e que atormenta os vivos é mais do que presente em nossa cultura. Podemos dizer que o cinema, seriados, novelas e literatura são responsáveis pelo não-esquecimento dessa idéia.

Mais adiante, talvez o ponto alto do livro, é explicado o culto ao lar, o fogo sagrado e a união da família sob a crença comum. É interessante pensar como a conexão entre consanguíneos de nada valeria se a religião não os conectasse. A idéia hoje tão banal para nós de parentesco nos tempos antigos não se aplicava, já que era a religião (termo este inexistente na época, tendo surgido no século XVIII) que definia de fato a formação da família.

Um dos aspectos mais interessantes, se não intrigantes, é o fato de diversos povos antigos compartilharem de crenças assustadoramente semelhantes. No livro, o foco é voltado para gregos, romanos e hindus – embora saibamos que alguns costumes citados no livro tenham feito parte da cultura de povos mesopotâmicos e escandinavos. É importante salientar que a adesão das famílias antigas á cultos de deuses em comum não foi algo imediato, tampouco simples. No início, haviam muitas divindades distintas que usavam o mesmo nome, mas eram adoradas por famílias diferentes. Algo semelhante ao culto do fogo sagrado. Por fim, conforme determinadas famílias prosperavam, as demais viam-se tentadas a buscar as mesmas graças e adorar aos deuses das agraciadas. Assim, o culto a divindades em comum foi difundindo-se. Conforme algumas famílias deixaram de existir, com elas desapareceram algumas divindades. Há de se ressaltar também que em alguns casos, duas cidades distintas adoravam deuses diferentes, mas com o mesmo nome. A Atena que era adorada em Atenas não era a mesma adorada em Esparta; o Júpiter de uma cidade não era o mesmo Júpiter adorado em outra. A unificação desses deuses de mesmo nome como sendo apenas um mesmo deus se deu séculos mais tarde.

Um dos méritos da obra de Fustel de Coulanges é explicar-nos detalhadamente, usando fontes contemporâneas aos acontecimentos, a fundação de algumas cidades de fundamental importância, como Roma. Explica-nos de forma clara o quanto as crenças dos povos antigos foram responsáveis para a reunião de famílias distintas, com crenças próprias e que sempre relutaram socializar-se, tendo em vista as limitações impostas por conta dessas crenças tão esmiuçadas no livro.

Fato também descrito na obra é a admiração dos antigos pelos criadores de suas cidades e pela data de criação das mesmas. Anualmente eram feitas as oferendas á eles, e através de poemas imortalizados, não deixavam com que seus feitos fossem esquecidos pelas gerações seguintes, mesmo que com o passar dos tempos os poemas e ritos deixassem de ser compreendidos tanto pelos que recitavam quanto pelos que ouviam. Estes criadores tornavam-se uma espécie de ancestral em comum.

Mais adiante, a obra começa a abordar as revoluções que aos poucos suprimiram a religião. Durante toda a obra, o autor deixa claro por diversas vezes que praticamente todo o comportamento humano era guiado por ritos sagrados, normas religiosas e velhas crenças imutáveis. Como o passar do tempo essas revoluções – deixando claro que elas não aconteciam do dia pra noite e só tomaram um caráter de revolução anos depois de seu fim, ao serem analisadas friamente – atingiram os interesses dos patrícios, que usavam de sua velha religião como argumento que justificasse sua superioridade. Aos poucos, estes homens se viram na dura situação de mantenedores de um culto julgado ultrapassado por alguns, e não entendido por outros. Temos que levar em consideração que a plebe, por não ter tido o fogo do lar e o culto aos seus antepassados, nunca conseguiria compreender a magnitude desta crença para o patriciado.

O final da obra foca na ascensão do Império Romano, dando algumas pistas dos motivos pelo qual ele conseguiu tornar-se tão poderoso. Alguns dos motivos que o autor aponta estão na maior parte do tempo relacionados à religião. O fato de Roma aceitar povos de diferentes cultos e agregar ao seu panteão divindades de povos conquistados contribuiu muito para seu crescimento. Por fim, ainda entre os motivos do fim dos ritos antigos e do regime municipal, é citado o advento do Cristianismo. Pois se os cultos antigos faziam com que povos distintos não coexistissem amigavelmente, o Cristianismo seguia o caminho inverso, pregando a união entre os povos, mesmo que no início até mesmo seus seguidores tivessem certa resistência contra pregar para os gentios. Se analisarmos friamente, podemos até perceber que a aceitação do Cristianismo por parte de Roma á longo prazo se tornou cômoda, tendo em vista que o mesmo pregava a dissolução entre estado e religião. Levando em consideração os diversos problemas que a interferência dos antigos cultos trazia para as leis, pode-se dizer realmente que o advento do Cristianismo como religião do império – embora algo impensável no início – foi benéfica para os interesses da aristocracia romana.

Porém, há uma crítica que se faz necessária sobre a obra. Fustel de Coulanges dizia em vida, como já mencionado aqui, que o historiador deveria se desvencilhar completamente do presente, focar-se totalmente no passado. Só assim, segundo suas palavras, o historiador conseguiria evitar certos deslizes. No entanto, soa incômodo que várias vezes durante o texto ele se refira ao culto dos antigos como mera mitologia e fala sobre “não conhecerem o Deus verdadeiro”. Claro, devemos levar em conta a época no qual o livro foi escrito. No século XIX ainda havia um grande sentimento religioso nos homens, e me parece normal que o autor fosse cristão. Contudo, além de soar demasiadamente parcial (exigir imparcialidade de um historiador seria demais, mas é possível atenuar esta parcialidade), Fustel de Coulanges acaba dando um exemplo de sua contradição, comparando o culto ao mortos, ao fogo do lar e aos deuses antigos com o culto ao Deus cristão, sendo que o primeiro acaba inevitavelmente sendo visto sob uma visão pejorativa. Isso fica evidente de uma forma drástica na página 377 quando, ao falar sobre o abandono das antigas crenças de culto ao mortos, Fustel de Coulanges escreve: “contudo, desde o quinto século antes de Cristo, os homens pensantes foram se libertando desses erros”. Logo, o autor acabava por contradizer-se, como dito acima, pois acabava associando o culto dos antigos com sua própria religião, sem contar o caráter extremamente pejorativo dado àqueles que por quaisquer motivos não contestavam suas próprias crenças.

Um outro ponto incômodo, mas que ao mesmo tempo pode ser encarado como uma vantagem da obra, é o número de vezes que determinados pontos do livro são repetidos. Claro que temos que levar em consideração que essa era uma característica da escrita do século XIX, mas não deixa de ser cansativo; faz com que o leitor se desinteresse pela leitura, caso seja um leitor ocasional. Esse característica é sentida principalmente no Livro Terceiro, mas se faz presente durante a maior parte da obra.

Embora esses dois pontos negativos acima possam vir a incomodar alguns leitores menos interessados no tema, é impossível para qualquer historiador negar o quão minucioso é este trabalho e o quanto ele foi importante para o entendimento destas duas civilizações que tanto impressionaram o homem e que até hoje despertam a curiosidade de milhares. Mérito do autor que se valeu de fontes indiscutivelmente legítimas, utilizando de documentos escritos por contemporâneos aos eventos citados, como Tucídides, Heródoto, Tito Lívio, Plutarco, Aristóteles, entre tantos outros. A ausência de imagens no livro em momento algum faz com que a compreensão do trabalho seja incompleta.

Não é exagero dizer que qualquer historiador precisa, pelo menos uma vez durante sua vida acadêmica, ter contato com este livro. Leitura obrigatória para todo aquele que anseia compreender o pensamento dos antigos, origem de termos atuais, de crenças e mitos populares até hoje em voga; dificilmente agradaria um leitor ocasional ou quem não se interessa muito por história, já que como dito antes, sua escrita pode soar um tanto repetitiva – mesmo que essa característica o torne efetivamente didático – principalmente para leitores menos assíduos, mas é indispensável, como já salientado, ao historiador que deseja um pleno entendimento da antiguidade ocidental.

Preço Médio: 15,00

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Caros leitores:

Com certo orgulho venho inaugurar este blog. Ideia recente, não a cultivei como costumo fazer com tantas outras, apenas deixei-me levar pela empolgação; não há como saber que frutos ela me dará.

A ideia deste blog surgiu ao ler uma determinada obra, que ao término de sua leitura resenharei. Enquanto lia, pensava "Este livro é sensacional, todo historiador que se preze deveria ler". Foi aí que pensei "Ninguém lerá se ninguém recomendar".

Muitas vezes livros sensacionais são esquecidos em prateleiras e estoques de livrarias por não terem sido divulgados conforme merecido. Para um historiador, é fácil ir direto á um livro de Michel Foucault ou Jacques Le Goff clamando por sua compra. Difícil é descobrir tantos outros autores dignos de nota, mas que não alcançaram status o suficiente para que seus nomes falem por si só.

Por meio deste blog, que não sei ao certo quanto tempo durará, tentarei resenhar bons livros de história (lembrando que "bom" ou "ruim" são conceitos relativos demais para serem usados como verdade absoluta) tanto para historiadores, sejam eles veteranos ou calouros, quanto para entusiastas que gostam de História, mas cuja leitura sobre ela não ultrapassa os livros didáticos.

Espero que as resenhas futuramente postadas sejam de algum valor para os visitantes deste blog.

Obrigado.