21 de junho de 2009

Dee Brown - Enterrem meu coração na curva do rio

BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2003.

A cultura popular em geral, desde filmes de faroeste a desenhos animados, sempre exaltou a ousadia do homem branco em solo americano, arriscando sua preciosa vida em nome do progresso, da civilização e do bem-estar do “povo americano.” Para tal, envolvia-se em perigosíssimas batalhas contra os índios; criaturas odiadas pelo branco, selvagens sanguinários, praticantes do brutal escalpo que, armados de arcos, flechas, lanças, pedras e rifles velhos, impediam a expansão americana.
Pois eis que em 1970, Dee Brown lança o livro Enterrem meu coração na curva do rio. Nascido em Louisiana, seu primeiro amigo fora um menino índio, que o acompanhava em todos os filmes que retratavam a luta do branco herói contra o índio maléfico. Ao término dos filmes, o garoto índio sempre aplaudia a vitória do branco sobre o índio. Dee Brown não entendia, até que questionou seu amigo sobre tal fato e este respondera “Não são índios de verdade.” Foi aí que Brown percebeu que de fato, os índios retratados em filmes, livros e desenhos não passavam de caricaturas estereotipadas dos verdadeiros indígenas; homens pacíficos que lutavam para manter o seu direito a vida, o direito de viver nas terras que sempre foram suas e de seus antepassados, a preservação da caça e a preservação da natureza, indispensável para a vida.
Formando-se na Universidade de Washington durante a grande Depressão, conseguiu um emprego de bibliotecário do Departamento de Agricultura. Foi nessa época que começou a mostrar suas habilidades como pesquisador. Para a criação de Enterrem meu coração na curva do rio, Brown utilizou-se de registros oficiais de conselhos e tratados, entrevistas concedidas por índios encontradas em obscuros jornais da época, entre outras fontes que dificilmente veriam a luz do dia se não fosse o interesse de um competente pesquisador.
O período que o livro analisa – e que é o período de onde os maiores mitos do velho oeste surgiram – é o que compreende os 30 anos entre 1860 a 1890. Enquanto a historiografia americana guardava em sua memória massacres como o de Little Big Horn, aonde morreu o General Custer, eternizado como um bravo comandante e mostrado neste livro como um sanguinário perseguidor de índios, se esquece de massacres dezenas de vezes mais brutais, tal qual o massacre de Sand Creek.
O número de leis criadas para benefício dos índios que foram sumariamente ignoradas com o tempo, o número de tratados quebrados e a quantidade de massacres é difícil de se enumerar. Vou usar apenas o exemplo citado no parágrafo anterior, sobre o massacre de Sand Creek.
Os índios Cheyennes estavam acampados em Sand Creek, por terem recebido a garantia de paz do major Anthony, comandante do Fort Lyon. Este os manteve próximos (o acampamento ficava a 65Km de distância do forte) até que recebesse reforços. Além destes, juntaram-se a ele os homens do coronel Chivington, ex-pastor metodista. Alguns homens de Anthony, como o tenente Joseph Cramer e o capitão Silas Soule, foram terminantemente contra o ataque. Conta-se que Chivington esmurrou Cramer e disse: “Vim para matar índios e acho que é certo e honroso usar qualquer meio sob o céu do Senhor para matar índios.”
O massacre é detalhadamente descrito, segundo relatos dos sobreviventes, de ambas as partes da batalha. Adiante, um longo trecho do livro que descreve os requintes de crueldade com que os soldados agiam, retirados do testemunho de Robert Bent, um dos homens que estava cavalgando contra sua vontade por ordem de Chivington:
“Vi uma squaw (mulher indígena) no banco, com a perna quebrada por um obus; um soldado foi até ela com o sabre desembainhado; ela levantou um braço para se proteger, quando ele golpeou, quebrando-lhe o braço; ela rolou e levantou o outro braço, que ele golpeou e quebrou; depois, deixou-a, sem matá-la. Parecia haver uma matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças. Havia cerca de trinta ou quarenta squaws
Reunidas numa caverna como abrigo. Enviaram uma menina de cerca de seis anos com uma bandeira branca num pau; mal dera uns passos, ela foi atingida e morta. Todas as squaws da caverna foram mortas mais tarde, além de quatro ou cinco homens fora dela. As squaws não ofereceram resistência. Todo mundo que vi morto estava escalpado. Vi uma squaw com seu filho ainda não nascido, segundo me pareceu, ao seu lado. O capitão Soule me disse depois que havia sido isso mesmo. Vi o corpo de Antílope Branco com os genitais cortados e ouvi um soldado dizer que iria fazer uma bolsa de fumo com eles. Vi uma squaw com os genitais cortados... Vi uma menina de uns cinco anos que se escondera na areia; dois soldados descobriram-na, tiraram seus revólveres e a mataram, arrastando-a depois pelo braço sobre a areia. Vi várias crianças de colo mortas com suas mães.” (1)

Este é apenas um dos trechos do livro que descreve a crueldade com a qual o soldado branco agia. Neste episódio em particular, um dos principais líderes do acampamento, Chaleira Preta, saíra com uma bandeira dos Estados Unidos e fora em direção a um dos dois grupos de soldados. A ele foi prometido que, empunhando a bandeira norte-americana, nenhum soldado atiraria nele. Chaleira Preta e os demais índios ao seu redor foram alvejados pelos rifles dos homens de Chivington e Anthony. Devo citar, aproveitando a ponte, que o ato do escalpo que durante tantas décadas foi creditado ao "índio senvagem" na realidade foi introduzido na américa pelos espanhóis e só passou a ser utilizado pelos índios norte-americanos porque os casacos-azuis assim o fizeram primeiro, tal como está descrito no relato postado acima. Infelizmente, não era conveniente que os "bravos soldados" fossem retratados como realmente eram. Era mais simples enumerar relatos de barbáries indígenas para legitimar a matança dos "inimigos do progresso e do homem branco".

Gradativamente, dezenas de outros povos foram exterminados ou reduzidos a poucos representantes. Desta época sangrenta surgiram nomes que, mesmo estando do lado até então considerado vil, sobreviveram na mentalidade americana. Nomes como Nuvem vermelha, Cochise e Touro-Sentado fazem parte desse grupo.
Este livro, mais do que um triste relato sobre todos os infortúnios que os índios norte-americanos tiveram que enfrentar, foi fundamental para toda uma revisão histórica e uma mudança de mentalidades. Pode-se dizer que esta obra mexeu com a consciência dos norte-americanos, e foi a partir dele que surgiram diversos filmes mostrando o lado dos vencidos.

Levando em conta que ele trata exclusivamente da história dos Estados Unidos, muitos talvez não se interessem pelo mesmo. Sua leitura pode ser um tanto cansativa para quem não possui interesse no tema. Mas mesmo assim me vejo no dever de recomendar este livro para qualquer historiador. Mais do que um simples estudo de três décadas de injustiças, ele é uma mostra da brutalidade humana, do que o homem é capaz de fazer para atingir seus objetivos. Seria de uma ingenuidade tamanha acreditar que estes foram episódios isolados e que tais mostras de barbárie não se repetem nas inúmeras guerras e guerrilhas que ainda hoje nos batem à porta mediante jornais e noticiários em geral. Mais do que conhecer acontecimentos do passado de um outro país, ler este livro é conhecer a mentalidade daqueles que sempre justificaram suas ações com seus discursos demagogos de caráter civilizatório.

Pode soar falso, mas dizer que se trata de um livro emocionante, que realmente faz você pensar sobre a mentalidade humana e lhe ensina a olhar com desconfiança a dita “história oficial”, não é exagero.

Preço médio: R$ 23,00

Notas:
(1): BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2003. pp 78-79