19 de julho de 2016

Vestidas para agradar: transformações na moda desde o Antigo Regime

O texto abaixo foi escrito por Eneida Queiroz para o site da Revista de História da Biblioteca Nacional. O original pode ser lido clicando aqui.

Por Eneida Queiroz
Mulher de espartilho vermelho, tela a óleo de
Adrien de Witte (s/d). O espartilho contribuiu
para a erotização do corpo feminino no começo
do século XIX. (Imagem: REPRODUÇÃO /
ORIGINAL DO MUSEU DE ARTE WALLON)

A luta pela “barriga negativa” e o aumento de cirurgias plásticas no Brasil e no mundo são novas versões de um antigo fenômeno: o sofrimento das mulheres para se manterem dentro dos padrões de beleza hegemônicos. Por mais que pareça anacrônico, o silicone de hoje e as anquinhas ou os espartilhos do século XIX unem-se em espantosa semelhança. O controle do corpo feminino é marca de sociedades patriarcais.

As estruturas rígidas e os enchimentos das roupas femininas na segunda metade dos oitocentos, momento de paroxismo da erotização do vestuário, têm origem em peças mais antigas. No Antigo Regime, o barroco e sua vertente mais rebuscada, o rococó, ainda ditavam moda nos trajes de baile da corte francesa, como os de Maria Antonieta (1755-1793). Vestidos com ancas laterais conhecidas como pannier – estruturas de barbatana de baleia ou galhos de vime – ampliavam as saias vários metros para cada lado. Antes deles, na nobreza espanhola do século XVII, as saias eram suportadas pelo farthingale, visível nas damas dos quadros de Velasquez (1599-1660). Como a Revolução Industrial ainda dava seus primeiros passos no século XVIII, a maior parte da população europeia e de suas colônias não usava essas roupas, pois não tinha acesso fácil e barato aos tecidos e às técnicas. Ademais, ainda havia proibição de uso de determinadas vestimentas: a estratificação da sociedade era visível também na moda.  

A Revolução Francesa (1789-1799) põe fim à era de extravagâncias, surgindo na moda a linha Império. Os vestidos do período descem livres e fluidos a partir da base do busto, imitando as togas da antiguidade, sob influência do neoclassicismo. Exemplos desse vestuário estão em todos os quadros que representam Josefine, a esposa de Napoleão. Mas a liberdade que as mulheres experimentaram com vestidos soltos e sem espartilho estava com os dias contados. O período napoleônico chegou ao fim e a restauração monárquica abraçou a Europa, assim como o romantismo e o espartilho a comprimir as moças em um ideal de feminilidade frágil e irreal.

Retrato de Maria Antonieta, óleo de Elisabeth 
Louise Vigée Le Brun (s/d). No século XVIII, 
o rococó ainda ditava moda nos trajes de baile da 
corte francesa. (Imagem: MUSEU DE BELAS 
ARTES DE ARRAS - FRANÇA)

Ao longo dos anos 1820 e 1830, as saias eram rodadas e as damas da elite almejavam recheá-las usando muitas anáguas de diferentes tecidos, o que obviamente tornava a roupa pesada e dificultava a locomoção. O que se pretendia com o encontro de um espartilho com uma saia em forma de domo? Mulheres de cintura fina e quadril largo, ainda que escondidos sob a saia, mas sugeridos por sua amplitude. A sistemática exibição de um corpo feminino erotizado começava a tomar forma, mesmo que de maneira hipócrita e velada.

Nos anos 1850, o volume dos vestidos tornou-se cada vez mais problemático, provocando um debate na sociedade sobre aquele aspecto ridículo da moda: a imobilidade das mulheres. E a metade final do século XIX foi marcada pela consolidação da segunda fase da Revolução Industrial, que enfim democratizou a opressão feminina na moda ao levar o redesenho do corpo das mulheres para os outros estratos sociais, além da elite. Em 1856, o americano W.S. Thompson patenteou a armação de metal conhecida pelo nome de crinolina, que simplesmente revolucionou as vestimentas femininas. Mirando o ecletismo dominante do período, a invenção era um misto de referências ao passado e extrema inovação gerada pelo crescimento da indústria: a leveza do aço.

Ao mesmo tempo em que reflete as armações dos séculos XVI e XVIII, aquela gaiola de metal está firmemente ancorada na modernidade do século XIX. Com aros finos, a crinolina era bem mais leve que as diversas anáguas, dando às mulheres um espaço dentro da abóbada, no qual as pernas ficavam livres para andar. A armação começou a ser produzida em larga escala e vendida nas recém-criadas lojas de departamento, e mesmo moças da crescente classe média podiam adquiri-la. Pela primeira vez, houve uma homogeneização da moda feminina nas cidades.

Madame Charles Naurice de Talleyrand, óleo
sobre tela do barão de François Gérard, 1804.
Após a Revolução Francesa, a linha Império traz
vestidos que descem fluidos a partir do busto, como
as togas da antiguidade. (Imagem: MUSEU DE
ARTE METROPOLITANO DE NOVA IORQUE)
A burguesia urbana ditava suas leis, impunha sua moral e seus costumes. Dava-se considerável atenção a tudo o que se revelava do domínio das aparências, a fim de confirmar seu lugar na sociedade. Mudou o significado da roupa: ela não era mais, como no Antigo Regime, a marca da origem social de uma pessoa, mas sim de seus recursos financeiros. Enquanto os homens eram discretos e sóbrios em suas vestimentas, transferiam para o visual da esposa e das filhas os seus status e poder econômico: os muitos enfeites das mulheres da elite revelavam o poder financeiro da figura masculina da qual dependiam. Enfeitar as esposas era sinal de status, e vestir-se com uma novidade da época, a “alta costura”, era uma forma de se igualar às senhoras das altas rodas sociais.

O título de criador da alta costura é dado ao inglês Charles Worth, que se mudou para Paris em 1845. Na época, os costureiros só trabalhavam sob encomenda, de acordo com instruções das clientes, e a moda transformava-se de forma lenta. O avançar da industrialização mudou este quadro, com maior disponibilidade de tecidos, queda nos preços e autonomia criativa dos costureiros. Tudo isso proporcionou à moda grande celeridade: surgiam as tendências passageiras, que retornavam repaginadas de tempos em tempos.

Worth foi um dos agentes mais importantes nesse período de mudanças. Uma de suas inovações foi apresentar vestidos prontos. Era um risco, pois não havia como saber se seriam comprados. Ele convidava as senhoras da alta sociedade à loja e exibia as roupas no corpo de sua esposa. Depois, passou a contratar outras mulheres para o serviço – e por isso se tornaria conhecido como o criador da profissão de modelo e manequim. Seus vestidos foram os primeiros com etiquetas internas identificando o criador da peça, pois ele os considerava como verdadeiras obras de arte assinadas. E Worth inventou, ainda, as coleções por temporada. Eram duas por ano, hoje conhecidas como primavera-verão e outono-inverno. Em cada período, apresentava-se nova gama de vestidos, sempre com características distintas, o que deixava o público feminino em polvorosa.

Condessa Maria Ivanovna Beck, óleo sobre tela
de Franz Xaver Winterhalter (s/d). Na segunda
metade do século XIX, o volume dos vestidos
chegou a provocar a imobilidade das mulheres.
(Imagem: MUSEU DE ARTE METROPOLITANO
DE NOVA IORQUE)
A associação do seu nome com as mulheres da alta realeza europeia garantiu-lhe penetração no gosto da burguesia. Uma de suas clientes mais famosas, a imperatriz Eugênia, esposa de Napoleão III, era fanática pelas crinolinas. Embora não apreciasse a indumentária com a mesma paixão, Worth produziu para ela vestidos de amplitude exagerada, o que foi copiado por outras mulheres da época. O extremo chegou a tal ponto que cartunistas adoravam retratar mulheres que voavam ao vento em virtude do balão que se tornara a saia, ou incapazes de cruzar uma porta. A condescendência com os gostos da imperatriz era uma exceção nos hábitos de Worth: de notória rudeza e arrogância, ele impunha suas escolhas estilísticas em vez de ouvir a opinião das clientes.

A partir de meados da década de 1860, a crinolina começou a ficar reta na frente e nas laterais, permanecendo o arco abaulado apenas na parte traseira. Worth também é um dos grandes responsáveis por esta inovação: a crinolette, cuja evolução foi a anquinha, surgida em 1870. A moda ocidental ganhava novas silhuetas: justas e estreitas na frente, as saias tinham amontoados de tecido na parte traseira, em cauda para os trajes de festa. Perderam-se os ganhos de mobilidade da crinolina, e a moda feminina atingiu um dos seus auges de tolhimento e erotização: espartilhadas, com um volume grandioso na região das nádegas.

De 1870 ao início dos anos 1900, a silhueta mudou das anquinhas para o exagerado busto único e a silhueta em forma de S, que projetava os seios para frente e o quadril para trás – numa espantosa lordose do próprio corpo, e não mais de enchimentos. O Ocidente assistiria a momentos de racionalização da roupa, preconizados por grupos como os pré-rafaelitas na Inglaterra, que baniram espartilhos, e como as sufragistas, que usaram a calça comprida bloomer a partir da década de 1850, mas foram exceções que não encontraram esteio na sociedade até as primeiras décadas do século XX.
Oprimidas ontem pelo patriarcalismo e hoje por seus vestígios ainda arraigados na mídia “photoshopada”, as mulheres seguem, em grande parte, com a autoestima baseada na aceitação dos homens.

Eneida Queiroz é historiadora do Instituto Brasileiro de Museus e autora de A mulher e a casa (Baraúna, 2013).

Saiba mais

MACKENZIE, Mairi. ...Ismos – para entender a moda. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2010.
STEVENSON, N.J. Cronologia da moda, de Maria Antonieta a Alexandre McQueen. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2012.
XIMENES, Maria Alice. Moda e arte na reinvenção do corpo feminino do século XIX. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.

Filmes

Maria Antonieta (Sofia Coppola, 2006).
Razão e Sensibilidade (Ang Lee, 1995)
Orgulho e Preconceito (Joe Wright, 2005)
E o vento levou (Victor Fleming, George Cukor, Sam Wood, 1939)
A época da inocência (Martin Scorsese, 1993)
Ana Karenina (Bernard Rose, 1997)