9 de setembro de 2016

“El Don”: senhores e nobres na Idade Média



Por Rodrigo Prates de Andrade

Lançada no dia 02 de setembro de 2016, a segunda temporada de Narcos – seriado produzido pela Netflix – fora marcada pela derrocada de Pablo Emilio Escobar Gaviria um dos maiores drug lords da América Latina. Referido na séria muitas vezes como Don Pablo, o narcotraficante colombiano não fora o único a receber o pronome don – outro importante personagem da série fora Diego Fernando Murillo Bejarano, o Don Berna.


El Don Pablo
O leitor possivelmente lembrará de outros personagens históricos tratados desta maneira: como esquecer Dom Pedro II ou Dom João VI? Utilizado pelos reis de Portugal e imperadores do Brasil, até mesmo pelos maiores narcotraficantes do século XX, o termo dom se remetera ao período que hoje conhecemos como a Idade Média.


Concedido aos grandes homens da Península Ibérica, o dom, oriundo da palavra latina dominus, representara a senhoria destes homens sobre uma terra e seus servos, sendo outorgado a reis, infantes e membros do alto clero e da alta nobreza. Assim, não bastava ser nobre – era preciso ser um nobre poderoso, deter terras, rendas e uma vasta rede de homens sob seu serviço.

Os reis ibéricos, por exemplo, tinham seu poder fundamentado em relações pessoais e patrimoniais que se estendiam em uma rede de juramentos – um rei possuíra vassalos que, por sua vez, possuíram vassalos menores que possuíram vassalos ainda menores. O poder destes monarcas não era sustentado pela propriedade do território em si, pois quando conquistados, estes eram outorgados aos seus vassalos que os conduziram à vitória (RUCQUOI, p. 215). É claro que não podemos esquecer que a concessão de terras gerara um pacto feudal entre o rei e seu vassalo – em que ambos juraram proteger e honrar o outro – no qual o novo guardião daquela terra oferecia auxílio militar e parte de suas rendas ao suserano.

Nas Coroas de Aragão, Castela e Portugal o serviço militar prestado por esta nobreza era remunerado sob a forma de um salário e na repartição dos espólios das guerras. Os nobres ainda recebiam de seus reis honores ou tenencias, ou seja, partes dos próprios territórios conquistados (RUCQUOI, p. 218). Contudo, estas terras permaneciam como propriedade do rei, sendo mantidas e protegidas por estes nobres, que igualmente deviam parte de seus rendimentos ao seu senhor (BONNASSIE; GUICHARD; GERBET, p. 197-201).

Iluminura das Cantigas de Santa Maria de Afonso X de Castela – Don Alfonso

Um exemplo interessante sobre o emprego do pronome de tratamento dom fora registrado em meados do século XIII no Livros dos Feitos de Dom Jaime I de Aragão. Durante o cerco da cidade de Maiorca, um sarraceno chamado Dom Aabet enviou uma mensagem ao rei Dom Jaime afirmando que entregaria uma partida da ilha, e que se fosse bem tratado, outros sarracenos também o fariam:

Nós expusemos isso aos nobres da hoste, e todos disseram que era bom que isso ocorresse. Depois, o sarraceno nos disse para enviarmos cavaleiros a um lugar seguro, a aproximadamente uma légua da hoste, que ele sairia dali sob a nossa confiança, para fazer seu pacto conosco e nos servir de boa fé e sem engano, pois assim nós reconheceríamos o grande serviço que ele nos faria. Assim, enviamos vinte cavaleiros e o encontramos naquele lugar. Ele chegou com seu presente, e nos ofereceu cerca de vinte bestas carregadas de cevada, cabritos, galinhas e uvas. As uvas que ele nos trouxe eram de tal qualidade que mesmo estando nos sacos não se partiram nem se estragaram (JAIME I DE ARAGÃO, p. 99-100).

Os nobres perceberam que aquele seria um bom serviço, pois a hoste cristã, que lutava contra os inimigos da Cristandade, seria reforçada por estes mesmos sarracenos. Sob a confiança de Jaime, Dom Aabet pactuou com rei, servindo-o “de boa fé e sem engano”. Para este Ben Aabet fora dado um pronome de tratamento restrito aos grandes homens da Península Ibérica - o Dom. Em um processo de tradução cultural, imputara-se o dom a Aabet, que provavelmente seria senhor de algumas terras, já que presenteara Jaime com uvas, cabritos e galinhas, tornando-o membro do reino de Aragão.

Assim, um Dom representara um grande senhor de terras, um homem que possuíra rendas como as uvas, cabritos e galinhas de Aabet e inúmeros vassalos como Dom Jaime. Séculos depois, o narcotraficante Pablo Escobar seria chamado de Don Pablo justamente por deter um grande império, milhares de dólares e centenas de homens e sicários sob seu serviço. El Don.

Referências

BONNASSIE, Pierre; GUICHARD, Pierre; GERBET, Marie-Claude. Las Españas Medievales. Barcelona: Crítica, 2001.

JAIME I DE ARAGÃO. Livro dos Feitos. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2010.

RUCQUOI, A. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995.